"O Luiz Pacheco é provavelmente o maior filho da puta, a pessoa mais corrosiva, mais intratável que há, mas eu gosto dele. Não sei porque mas gosto dele. O Luiz tem a capacidade de dizer o que pensa, de dizer mesmo tudo o que pensa, mesmo o que não poderia dizer(...)"
"Luiz Pacheco ou o maldito bem-amado da literatura
ISABEL LUCAS
Via-se como um ser ficcional. Morreu aos 82 anos
Um homem avançava pelo corredor de uma redacção. Passos incertos. Expressão imperceptível por detrás dos óculos de aros grossos. Atrás, outro homem, mais novo, saco de plástico na mão e o ar de quem está ali por acréscimo. Luiz Pacheco e um dos seus oito filhos, Paulo Pacheco, chegavam para uma entrevista. Era em meados dos anos 90 e as dificuldades financeiras que sempre marcaram a existência deste escritor que nunca escreveu um romance - dizia ele que por falta de disciplina - eram as de sempre. Luiz Pacheco falou, o gravador gravou e no fim da conversa, sem que houvesse nenhum acordo tácito, o estender, pelo jornalista, de uma nota de cinco contos logo conduzida pelo olhar de Pacheco para as mãos do filho Paulo. "Ele tinha uma moral muito própria, ou não tinha mesmo moral nenhuma", refere o crítico João Pedro George.
Para quem conviveu de perto com Luiz Pacheco esta é uma história banal na vida de um homem invulgar cujo percurso e personalidade são impossíveis de comprimir num artigo de jornal. "Ele era tudo menos o lugar- -comum", declarou ao DN João Pedro George, professor universitário a terminar uma tese de doutoramento sobre Luiz Pacheco. "Não será uma biografia tradicional. É uma tese de sociologia literária. Interessa-me partir da trajectória do escritor maldito para desconstruir a ideia de que isso tem uma carga negativa." É uma reprodução de um meio literário a partir do percurso individual de um homem que foi o seu principal biógrafo, alguém que dizia que primeiro se vive e depois se escreve sobre o que se vive: um escritor que nunca escreveu um romance e se fez a si mesmo personagem romanesca. Ele via-se assim. Os outros viam-no assim: um ser ficcional.
João Pedro George conheceu-o de perto. Trabalhou directamente com ele nos últimos dois anos e é ele quem o descreve como a personagem do romance que foi a sua própria vida. A última vez que o viu foi no dia 26 de Dezembro, no lar onde estava, no Montijo. Queria ouvir dele o nome da rapariga para colocar na dedicatória de O Crocodilo que Voa, uma antologia de entrevistas de Luiz Pacheco organizada por João Pedro George, e a editar este mês pela Tinta da China. Encontrou um homem "bastante debilitado, numa cadeira de rodas", com uma voz inaudível. Não conseguiu saber o nome da rapariga, mas sabe a história que a acompanha e a fez ser motivo de homenagem do homem que morreu na noite do passado sábado aos 82 anos de idade. A dedicatória será "A ..., açoriana, poetisa, excelente." Uma espécie de agradecimento na sequência de uma confissão polémica numa entrevista a Baptista Bastos. Pacheco afirmava ter tido relações sexuais com uma cadela. A seguir, a única voz de compreensão a essa frase "maldita" foi a de uma mulher que o visitou no lar e lhe terá dito que tal atitude revelava uma enorme solidão.
Era assim Luiz Pacheco. Desarmante, de "alguém que nunca perdeu a sua pureza artística, desconfiava das pessoas e tinha uma visão um pouco cristã do mundo no sentido em que achava que todos somos culpados até prova em contrário." Palavras de João Pedro George, mais uma vez, sobre alguém que não correspondia a um tipo convencional.
Por isso, na hora da sua morte, evitem-se palavras de circunstância. Luiz Pacheco, escritor excêntrico, maldito, bem-amado pelo crítica, morreu e deixou mais obra por publicar do que aquela que foi publicada. Sobretudo diários e cartas, uma correspondência que em quantidade se assemelhará à deixada por Camilo Castelo Branco. "Todos os dias escrevia cartas", sublinha Pedro George.
Natural de Lisboa, onde nasceu na Rua da Estefânea, a 7 de Maio de 1925, Luiz José Gomes Machado Guerreiro foi o melhor aluno do seu ano no Liceu Camões. Média de 18 que o levou a cursar Filologia Românica na Faculdade de Letras. Desistiu devido a dificuldades financeiras que o acompanharam ao longo da vida. Ainda foi funcionário público, mas preferiu a liberdade da condição de desempregado à segurança da rotina como agente fiscal da Inspecção de Espectáculos.
Escreveu artigos em vários jornais e revistas, dedicando-se, sobretudo, à crítica literária. Em 1950 fundou a editora Contraponto, que publicou principalmente obras de autores surrealistas, autores como Mário Cesariny, Herberto Helder ou António Maria Lisboa. Faliu. Como autor, destacou--se em 1964 com o conto Comunidade, que valeu o elogio da crítica (ver caixa). Mas seria a sua condição de crítico irreverente e a vida de libertino "com regras" a darem-no a conhecer às autoridades do Estado Novo. Esteve preso, viveu de esmolas, andou por albergues e quartos alugados. Dizia que tinha sete filhos e meio. Teve, de facto, oito, de várias relações, e a literatura sempre como projecto de vida.
- in DN"
Descobri tarde as letras deste homem. Mas mais vale tarde do que demasiado cedo. Eram (são) dele as palavras que mais me abalaram até hoje, que me sacudiram como um vulcão sacode uma ilha.
Há quem diga que não ficava calado, nem em frente de um juiz, mas o que lhe saía da boca não eram meras palavras, mas uma verdade corrosiva e incontornável.
Viveu uma vida de miséria, quase de mendigo, mas ficará certamente na história da literatura portuguesa, e diz quem sabe, do mundo.
Ontem ao ver o documentário maravilhoso sobre a vida dele na RTP2, chorei mas também ri que nem um perdido. Foi talvez esse o maior legado de Luiz Pacheco, consegue-nos fazer chorar e rir ao mesmo tempo. Mas sempre com uma honestidade rara e em vias de extinção.
Vai em paz. Os outros, como dizia ele "Puta que os pariu".